segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Help me

Ela revirou tudo. Guarda-roupa, armários, malas velhas, quadros, armarinhos dos banheiros. Tirou tudo, tudo da casa que pudesse lembrar aquele homem.
Pensava que assim não haveria mais lembranças, que estaria tudo enterrado. Jogou fora as meias que ele havia esquecido, o presto-barba, os desenhos do filho, a escultura de soldado, o cheiro, as risadas, os choros, as bebedeiras...
O pior é que com  tudo foi-se a vontade de escrever.  Não havia mais textos. Não havia mais vida ali.  Ele ralou sua auto-estima. A desprezou além do que podia e sua auto-estima foi embora com a reviravolta. Fez um caldo da moça. Ele, o ralador. Rala dor.
Passada uma semana um velho amigo chegou da África e foi visitá-la. Ele era um homem sensível, espírita, quase bruxo. Ela sabia que ele era sensitivo, sentia coisas quando estava perto das pessoas, mas com ela, naquela visita de volta, era a primeira vez que acontecia aquilo: - parece que seu coração foi amassado, eu sinto uma dor no seu coração, como se ele estivesse esmigalhado. Pegou um pedaço de papel e amassou. Vejo seu coração assim. Você teve alguma coisa com alguém? Quem fez isso com você? 
Ela olhou para o amigo com um olhar cabisbaixo e calou-se. Mudou de assunto.
Na hora de ir embora, quase chegando no portão, ele voltou e disse à ela: - Vou ficar no Brasil mais dois meses e vamos dar um jeito naquilo.
Ela o abraçou com os olhos cheios de lágrimas. E assim foi. Todo santo dia ele ligava. Dia após dia ele dizia ao telefone: - Você está se sentindo melhor? Estou meditando todos os dias para você, querida, você sente uma melhora? 
Ela dizia que sim e sentia mesmo. 
Com o tempo conheceu outras pessoas até que chegou um dia - aniversario de 50 anos de uma amiga de infância -  estava num bar - na ala de fumantes - quando chegou um rapaz claro ao seu lado, de cavanhaque já grisalho e falou: - Eu não fumo mas quero fumar um cigarro com você. 
- Imagina só, fumar pra quê? 
- Eu quero - ele disse sorrindo.
Conversaram, fumaram, trocaram telefones. Depois de quinze dias esse mesmo homem também ligava sempre para ela. Eram convites atrás de convites. Todos recusados com desculpas esfarrapadas:
- Não tenho com quem deixar minha filha.
- Estou em reunião até mais tarde.
- Hoje estou muito cansada.
Até que chegou um dia que ela aceitou. Saíram. Ele gostava de beber uísque. Ela o acompanhou. No meio da noite ele olhou bem para ela e disse: - Deixa eu cuidar de você, deixa eu ficar com você? E a beijou. Ela se atrapalhou toda, olhou assustada para ele e automaticamente pegou o celular na bolsa e, lembrou que o número do celular ela não tinha jogado fora naquela reviravolta, ele estava ainda na sua agenda. Com medo de que o homem de cavanhaque se aproximasse mais dela, pegou o celular e passou uma mensagem rapidamente, sem pensar em nada, para ele - o ralador de emoções - duas palavras em inglês, foi o que saiu: - help me. Ela queria ajuda, pedia socorro para não ter que passar por aquilo, ela não queria aquele homem seguro, certo que queria cuidar dela. Um pavor de ser amada por outro. Um medo terrível, uma repulsa e aquele 'help me' era como se ela tivesse escrito: - não me deixe ficar com outro homem novamente, me ajude, me tire das mãos dele. Ela levantou da cadeira do bar e saiu correndo, ele saiu atrás dela a segurou pelo braço e perguntou: - Porquê? Ela disse: - Não consigo, desculpe! Entrou no carro, engatou uma primeira e seguiu para casa sem resposta da mensagem enviada. Nunca havia respostas. Ela sabia. 'Help me' poderia ter mil sentidos às 2:00 da manhã. Mesmo assim, sem respostas. O ralador cultuava a frieza, o sofrimento, o não. Quando chegou em casa para se assegurar que nunca mais faria este tipo de contato inútil deletou o número dele do celular, deletou ele de seus contatos de e-mail, facebook e, agora sim não havia mais nada. Nem um resquício de contato, de números, de nomes, de cor. Ligou para o amigo que havia chegado da África - mesmo de madrugada - e pediu colo. Ele chegou logo em seguida. A colocou deitada na cama e vibrou durante horas cantando cantos xamanicos. O quarto virou templo. Ascendeu velas, passava óleos pela sua testa, mãos e pés. Um exorcismo de amor foi cultuado naquele coração surrado. No final, o amigo passou a mão pelos seus cabelos e disse: - fica com Deus.
Ela dormiu o resto da noite, durante o dia seguinte todo. 
Acordou diferente, mas nada mudava a vontade de permanecer sozinha. Era o ralador ou nada. Sem poder, ela preferia - ainda - o nada.

"Nosso amor tinha pressa, largou o automóvel e saiu caminhando, melancólico, entre motoboys e miragens, crepúsculo cubatanesco a escorrer do nariz, nosso amor era um boi na frente dos carros.


Nosso amor era um atropelo e a gente mal tinha tempo para fazer-lhe um dengo, um cafuné, uma cócega, um bilu-bilu, nosso amor era um tomagushi, um bichinho virtual criado e nascido como uma planta nesta cidade de 11 milhões de habitantes.
Aí nosso amor, puto da vida, bebeu, cheirou cola, acendeu o cachimbo na Cracolândia, perdeu os óculos, as lentes de contato, fez besteira na rua Augusta e quando alcançou o Tietê já nadava na correnteza em cima de um sofá velho cujo estofado denunciava lágrimas e esperas.
Nosso amor não conseguiu dormir direito de ontem para hoje,  zumbizou geral o malaco, perdeu-se como Esperanza, a linda boliviana de Cochabamba, Penélope que tece o interminável manto e nada espera nas fabriquetas de costuras do Bom Retiro.
Nosso amor não tinha norte, bússola ou GPS.
O amor em SP, repito, é como o metrô da Paulista: começa no Paraíso e termina na Consolação. Sinto muito."

Xico Sá




obra do artista Jorge Fonseca