segunda-feira, 6 de junho de 2011

Aeroplano

Ascendi uma vela de sete dias a Santo Antônio. Pensando num casamento, mas um casamento diferente.

Não consigo dormir. Minha cabeça está cheia. Pensei tanto o dia todo, pensei levando Sofia para o piano, para a escola, no supermercado. Hoje foi um dia aparentemente comum, só aparentemente. No fundo minha cabeça ecoava textos, sons durante o supermercado. Cada cena que via, pensava num possível pressagio. Estava traçando planos, inventando histórias. Recebi tantas informações que, meus ouvidos soavam coisas que eu nem esperava, os pensamentos vinham feito flechas. Vinham outras soluções, talvez eu pudesse ou queria ser outra ali ou lá: uma dona de casa qualquer, uma mãe de familia, talvez eu quisesse até mesmo me apaixonar. Mas não há tempo. Tempo pra ser nada a não ser isso que sou agora.

A noite baixou e vim para este canto. Quando preciso escrever eu venho pra cá. Escrevo sem medo. Pode ser o que for, aqui nao preciso estar atenta a nada. Meu vulcão em erupção. Meus cigarros seguidos. O tal processo criativo? Talvez.

Talvez por eu ter nascido mulher, eu pudesse me manter mãe, sem estar ali naquele momento. Dona de casa sem estar pensando na casa. Minha cabeça tinha apenas um objetivo. Um desastre entre identidade e linguagem. Uma luta pelo poder interpretativo. Um achado insuperável. Chegar num senso comum, adversa aos talentos femininos e ao gosto dos intelectuais. Eu precisava ser três. Ter mais duas de mim para conseguir fazer tudo. Nestes dias intensos que passei, descobri também que uma seqüência de coincidências aconteceram, as quais não são coincidências, e sim destino. Me apeguei aos detalhes, em lembrancas e tudo se fez verdade.

Mais do que um investimento pessoal, um investimento em que eu apostava num conjunto de fatos que sabia que me levaria para algo que estava procurando. Mas precisava de tempo e ambiente para isso. Eu precisava de mais malícia, ser menos influenciada para decidir questão por questão.

E cá estou eu, tentando... retomando. Retomar, tornar a tomar. O espanto e a fascinação por esse ser desconhecido que era eu mesma tentando romper com o tempo. Sentir que você tem um canal de expressão é um privilégio. Aos meus 40 aceitando os meus 20 anos passados. Minha vida e essa poesia. Sim, poesia.

AQUARELA

Mulheres sólidas passeiam no jardim molhado de chuva,

o mundo parece que nasceu agora,

mulheres grandes, de coxas largas, de ancas largas,

talhadas para se unirem a homens fortes.

A montanha lavada inaugura toaletes novas

pra namorar o sol, garotos jogam bola.

A baía arfa, esperando repórteres...

Homens distraídos atropelam automóveis,

acácias enfiam chalés pensativos pra dentro das ruas,

meninas de seios estourando esperam o namorado na janela,

estão vestidas só com um blusa, cabelos lustrosos

saídos do banho e pensam longamente na forma

do vestido de noiva: que pena não ter decote!

Arrastarão solenemente a cauda do vestido

até a alcova toda azul, que finura!

A noite grande encherá o espaço

e os corpos decotados se multiplicarão em outros.

Murilo Mendes

Eu, comigo mesma, na tentativa da expressão, sem nada mais. O que está agora em jogo é a construção da legitimidade num pouso não tão manso, mas gostoso e sem volta.