terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Unheimlich

Meu carnaval simplificado e fechado. Fiquei entre as alfinetadas dos ‘confetes e serpentinas’ de Nazareth Pacheco. Revi o trabalho dessa artista durante esses dias. Entre outras horas li a autobiografia da Marlene Dietrich há anos desperdiçada na minha prateleira. Fiquei entre essas três mulheres Marlene, Nazareth e eu. Às vezes quatro. As duas primeiras mais presentes que a terceira. Me fantasiei de fantasma. Falei quase nada. Desliguei o cabo do telefone. Li apenas um e-mail. De muito uma volta de barco outro dia, tomei um pouco de sol para tirar aquele branco choco, oco da minha pele ressacada.

Nazareth entre a dor e o êxtase de um mundo que nos estraçalha, esparramando vísceras em orgasmos bizarros num texto da Miriam Chnaiderman. A obra bela, transparente, de um brilho sedutor que dilacera qualquer identidade que queira existir, que queira entrar na vida da artista. ‘Ela’ não quer ninguém, sabe que ninguém a agüentaria com todos seus problemas físicos e psíquicos. Indiretamente se castiga, se mutila através de sua obra. Sabe que não suportaria viver com um ‘outro’ e suas diferenças. E se faz só. Surge em seguida a cama de acrílico rodeada por cortinas de giletes. Tudo dói, corta. Provavelmente ali é sua mesa de auto-dissecação.

Para chegar ao orgasmo, antes, se machuca, a dor deve ser profunda. Ela não o merece, pois não se consente. Quer o quase impossível de se ter. Cobre uma das paredes de seu quarto com imagens de santos expeditos. E num mergulho, nadando de costas no meio das obras de Nazareth, nossos corpos viram campo de batalha num mangue sanguinolento sem sangue. Inumano e profundamente humano.

Num apontamento entre eu, Nazareth e o ‘outro’ - fico feliz quando vejo que ainda é possível que achem outras pessoas por esse mudo afora. Que os encontros felizes aconteçam. Seca, vejo o quanto o meu grau de exigência se faz excelência. ‘Freud mostrou que onde a fúria da destruição é mais cega pode sempre estar presente uma satisfação libidinal’. É o que há de demoníaco em todos nós. O gozo barrado pelo desejo. E eu impotente, fraca.

Valery afirmou sobre Restif: “quem é verdadeiramente livre não é obsceno (...) porque quem é livre está além do bem e do mal – como o é o real”. É nesse jogo que Nazareth nos propõe: - quem goza com o gozo de quem? Aí vem o dilaceramento de sua obra, entre suplícios e torturas, não há apaziguamento possível e a agonia abraça o êxtase e, por conseqüência, me abraçam.

Vem à cabeça Elizabeth Bishop. Outra parva do mundo dos relacionamentos. Dispunha-se toda semana a parar de beber. Não conseguia. Rainha de um escândalo ou mesmo de um pequeno vexame. Depois, inconformada, se fechava em sua casa e não saia de lá enquanto a depressão não a fugia. Enquanto não resolvesse, novamente, parar de beber e assim, fraquejasse, repetidas vezes.

Já Marlene radical. Quente ou fria, morna jamais. Leio suas relações singulares com a vida. Erótica, mas fria. Presunçosa e, não obstante, apaixonada. Viveu como devia, amou como quis. Antifascista irredutível, por perversa ironia do destino era atriz preferida de Hitler. Ofereceram-lhe uma volta triunfante de Hollywood para Berlim, repugnada não aceitou. Seus filmes foram proibidos em toda a Alemanha. Na medida, dando suporte a sua historia, começa a salvar perseguidos políticos. Independente, despachada e incitante.

Entre Nazareth e Marlene: defeitos físicos tortuosos de uma artista plástica dos anos 80 e a beleza mítica da atriz, nascida em 1901. Nesse ínterim quatro dias de carnaval suados, desesperados por inúmeras respostas. Sem saber de nada, sem respostas, acho que posso estar salva vestida de fantasma. Acesso esses dois mundos na tentativa inconsciente de me achar. Percebo que sou um pouco de cada uma delas, uma mistura nada sábia das duas. Das três.

Inerente a outra história, nada me comove. Há meses, quando encontro ‘algo’ durante uma noite, no dia seguinte levanto cedo, pego as chaves do carro e saio. Não há mais nada quando olho para trás, apenas a noite passada. ‘Algo’ que passou despercebido. Esgotaram minhas fantasias. Nessas horas me vem a certeza que estou mesmo entre Nazareth e Marlene, numa rua sem saída, esperando minha hora chegar feito Bishop.

"então que seja um grandioso fracasso, os criticos vão vociferar. Mas prefiro ver vocês em um grandioso fracasso do que em um filme mediocremente ruim".

Sternberg










"Chama-se unheimlich tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, e se manifesta". A partir daí, Freud desenvolverá sua interpretação do termo como "recalque" (algo de familiar à vida psíquica e que o processo de recalque transformou em "estranho": "O estranhamento familiar nasce na vida real quando complexos infantis recalcados são reanimados por alguma impressão exterior, ou quando convicções primitivas superadas parecem ser novamente confirmadas", apoiando-se em diversos exemplos, para concluir que esse fenômeno, que se manifesta como sensação de terror ou mal-estar, advém exatamente da perda dos limites entre realidade e imaginário por um sujeito determinado.